Trusts como alternativa de planejamento patrimonial e sucessório
Introdução
Sob a perspectiva da organização do patrimônio e o planejamento da sucessão, o trust é utilizado há séculos em países de common law para atender, de forma eficaz, às mais variadas demandas de famílias e dos indivíduos que a compõem.
Ao longo do tempo, o instituto do trust despertou interesse de países de tradição romano-germânica, que adaptaram a sua legislação interna ou valeram-se de convenções internacionais, em especial a Convenção de Haia sobre a Lei Aplicável aos Trusts e o seu Reconhecimento, concluída em 01.07.1985 (“Convenção de Haia sobre Trusts”).
O Brasil não é parte da Convenção de Haia sobre Trusts, e não há no ordenamento jurídico instituto que corresponda perfeitamente ao trust, especialmente sob a perspectiva da organização patrimonial e sucessória da pessoa física.
Trusts validamente constituídos no exterior podem ser reconhecidos no Brasil?
Entretanto, não há como negar que os trusts são uma realidade no Brasil e que, se validamente constituídos no exterior, também deverão ser reconhecidos como válidos no país, desde que não haja ofensa à soberania nacional, à ordem pública e aos bons costumes, a partir das normas de Direito Internacional Privado aplicáveis, em especial da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB.
A esse respeito, a utilização de trusts como alternativa de planejamento patrimonial e sucessório já era considerada por indivíduos brasileiros em determinados contextos de necessidades especiais da família, especialmente no que se refere à adequada gestão e governança de ativos e/ou de residência fiscal de membros da família no exterior.
Nos últimos anos, o trust chegou a ser expressamente contemplado em normas e orientações do Banco Central do Brasil e da Receita Federal do Brasil, até que, por meio da Lei nº 14.754, de 12.12.2023 (“Lei nº 14.754/2023”), e normas infralegais, o tratamento fiscal aplicável no Brasil a trusts constituídos no exterior passou a ser efetivamente regulado, mitigando incertezas jurídicas a respeito da tributação de certos tipos de trusts pelas autoridades brasileiras, especialmente no que se refere à incidência do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física – IRPF e do Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens e Direitos – ITCMD.
Por tal motivo, a seguir se procurará abordar brevemente o trust, sob a perspectiva do Direito de Família e das Sucessões brasileiro, destacando algumas das possíveis utilizações práticas do instituto por cidadãos brasileiros e indivíduos domiciliados no Brasil, quando validamente constituído no exterior, sob a proteção de sistemas processuais confiáveis no que tange a proteção dos direitos dos beneficiários.
Importante ressaltar, contudo, que esta análise não procura ser exaustiva, bem como que, como em todo planejamento patrimonial e sucessório, a opção pelo instituto, em qualquer hipótese, deve, obrigatoriamente, passar por uma cuidadosa e abrangente avaliação dos respectivos efeitos tributários, desde o momento da constituição do trust, passando por eventuais distribuições, seja de rendimentos, seja de capital, até a restituição do patrimônio do trust aos beneficiários.
O que é o trust? Quais são as figuras do trust?
O trust pressupõe uma relação jurídica estabelecida entre, ao menos, três partes: settlor, trustee e beneficiários. A depender da situação concreta, outras figuras, tais como a de Protector, Investment Advisor e Distribution Advisor, integradas ou não em comitês, poderão ser agregadas.
O settlor é o instituidor do trust, isto é, quem contribui ativos ao trust e celebra o ato constitutivo (trust deed, trust agreement ou trust settlement) que dispõe os termos e condições que governarão o trust. O trust nasce da vontade unilateral do settlor, por ato inter vivos ou por determinação testamentária, de afetar um patrimônio a uma determinada finalidade ou objetivo. No mesmo documento, o trustee é escolhido e se determinam os beneficiários do trust.
O trustee é o indivíduo ou empresa nomeado pelo settlor, em caráter fiduciário, para administrar os ativos do trust, tornando-se efetivamente proprietário do patrimônio afetado pelo trust no momento de sua transferência pelo settlor ao trust. Muito embora o trustee possua poderes na qualidade de proprietário e administrador do patrimônio afetado pelo trust, os poderes necessários são exercidos exclusivamente para a consecução de determinado objetivo ou para beneficiar certa(s) pessoa(s) – o(s) beneficiário(s) – conforme prescrito no ato constitutivo do trust.
Os beneficiários são pessoas físicas ou jurídicas que fruirão da propriedade e de eventuais rendimentos dos ativos do trust, seja imediatamente ou no futuro. O próprio settlor em vida pode figurar dentre os beneficiários do trust. O conjunto de beneficiários não precisa estar totalmente definido de início, bastando que sejam tais beneficiários determináveis, conforme o instrumento de constituição do trust (por exemplo, os descendentes do instituidor na linha reta etc).
Da propriedade do trust: trustee versus beneficiários
Ressalta-se que o beneficiário do trust igualmente é proprietário do patrimônio em trust. O beneficiário, contudo, não pode escolher livremente como pretende usar e fruir do patrimônio em trust, ficando adstrito à gestão e às escolhas levadas a efeito pelo trustee conforme o ato de constituição do trust. Sem prejuízo, cabe ao beneficiário responsabilizar o trustee em caso de violação dos termos do trust, ou de má gestão comprovada. Em nossa prática, procuramos ser bastante criteriosos em relação à jurisdição escolhida para a constituição do trust, que deve apresentar regras claras e sólidas em relação à responsabilização do trustee pela sua atuação como tal.
Quais são os comitês do trust?
A estrutura de governança do trust poderá prever órgãos específicos, cada qual com o seu escopo, denominados comitês. É comum o ato constitutivo do trust prever a existência de um protector ou de um Protective Committee, a quem serão conferidos determinados poderes, tais como fiscalizar a atividade do trustee, e participar, recomendar ou aprovar decisões relevantes envolvendo o trust. O próprio settlor pode atuar como protector ou membro do Protective Committee, ou nomear tais membros, podendo, inclusive, ser pessoa(s) física(s) de sua confiança.
Outros comitês usualmente estabelecidos são o Investment Committee, responsável pelas decisões relacionadas ao investimento do patrimônio do trust, e o Philanthropy Committee, que determina questões voltadas à filantropia, caso esta seja a vontade do instituidor.
Quais ativos podem ser contribuídos ao trust?
Vale destacar que o patrimônio do trust poderá ser composto por diversos tipos de ativos, a exemplo de participações societárias, ativos financeiros e imóveis, dentre outros. Ressaltamos novamente que as consequências fiscais deverão ser analisadas em detalhe no caso concreto.
Da Letter of Wishes
Cumulativamente com o ato constitutivo do trust, o settlor pode optar pela elaboração de uma letter of wishes (carta de intenções), na qual poderá declarar seus desejos em relação à destinação do patrimônio do trust. Apesar de não ser vinculante, a letter of wishes é comumente seguida pelo trustee. Em geral, os temas abordados na letter of wishes incluem governança, políticas de investimentos e de distribuição de ativos aos beneficiários.
Trust revogável versus irrevogável
Em relação ao período de duração do trust, este é determinado pelo settlor no ato constitutivo. A depender do objetivo a ser alcançado pelo settlor, tal período de duração pode equivaler ao maior prazo aceito pela lei do local de instituição do trust, de modo que a estrutura permaneça vigente por muitas gerações.
O trust pode ser constituído em caráter revogável ou irrevogável. Nos casos de trusts revogáveis, existe a possibilidade de reversão do patrimônio do trust ao settlor, por decisão do próprio settlor, enquanto o trust irrevogável só poderá ser revogado em circunstâncias específicas que não dependem da discricionariedade do settlor. Os impactos fiscais no Brasil e regras de reporte aplicáveis aos trusts revogáveis distinguem-se dos trusts irrevogáveis, conforme abordaremos na Parte 2.
Por fim, pode ser conferida ao trustee maior ou menor discricionaridade no que se refere às distribuições de ativos ou rendimentos do trust, havendo casos, por exemplo, em que certo grupo de beneficiários terá seus direitos restritos a rendimentos determinados pelo trustee, de acordo com parâmetros gerais definidos pelo instituidor, situação essa que não é tratada especificamente na legislação tributária.
*Este conteúdo foi produzido em 14 de maio de 2025.
Adriane Pacheco ([email protected]), Renata Guimarães ([email protected]) e todo time HSA estão à disposição para esclarecer quaisquer dúvidas adicionais relacionadas ao tema, tanto na prevenção de conflitos, como em questões litigiosas. As informações presentes neste conteúdo não devem ser utilizadas para fins de consultoria. Cada caso deve ser analisado de forma individual.