Alterações quanto a doações
Em continuidade à nossa série de artigos sobre o anteprojeto de lei para revisão e modernização do Código Civil (“Projeto de Revisão do Código Civil”), comentamos hoje alterações com relação a doações.
Regras Gerais Atuais
O Código Civil atualmente prevê, como regra geral, que a doação de ascendentes a descendentes ou de um cônjuge/convivente a outro importa adiantamento do que lhes cabe por herança (artigo 544). A norma tem como principal objetivo evitar ofensa à igualdade sucessória entre os herdeiros necessários (isto é, àqueles a quem hoje necessariamente caberá metade do patrimônio do falecido).
Na prática, as doações que tenham como partes estes familiares terão de ser apresentadas, pelos herdeiros necessários, no inventário, por meio de mecanismo jurídico intitulado “colação”. Seu objetivo é apurar o valor total da “legítima”[1], considerando as doações ocorridas no passado e o patrimônio existente no momento do falecimento, para que todos os herdeiros necessários recebam partes equivalentes do patrimônio.
Muito embora trazer os bens à colação seja um dever (conforme dispõe o artigo 2.003 do Código Civil), o artigo 2.006 do mesmo diploma traz exceção a esta regra, permitindo que o doador expressamente preveja, em testamento ou no próprio instrumento de doação, a dispensa ao herdeiro de colacionar o bem recebido.
Esta cláusula tem especial relevância em planejamentos sucessórios, pois serve para desonerar os herdeiros desta obrigação em inventário, considerando-se então que a doação feita foi tirada da porção livre (“disponível”) dos bens do doador.
Vale lembrar que esta regra se aplica para as doações a herdeiros necessários. Tudo o que for doado a um terceiro será passível unicamente do controle que é comum a todas as doações: conforme preconiza o artigo 549 do Código Civil, será considerada nula a doação que exceda o limite do patrimônio disponível pelo doador no momento da liberalidade.
Doações Sucessivas
Questão que levanta debate jurisprudencial e doutrinário, ainda, é a realização de doações sucessivas (isto é, ao longo dos anos, calculando valores que não excedam a legítima a cada doação).
Nestes casos, muito embora o Código atual diga apenas que “São dispensadas da colação as doações que o doador determinar saiam da parte disponível, contanto que não a excedam, computado o seu valor ao tempo da doação” (nossos grifos), o entendimento majoritário da jurisprudência (especialmente do Superior Tribunal de Justiça) é no sentido de que todas as doações deverão ser consideradas em conjunto para apurar se os valores doados ultrapassaram a legítima ou não.
Ou seja, para coibir violações à legítima, o cálculo deverá levar em conta todas as doações somadas, e não cada uma delas de maneira individualizada. Do contrário, bastaria ao doador que, a cada oportunidade, doasse metade de seu patrimônio, ostensivamente burlando o intuito da norma e ao final extinguindo sua fortuna.
Quais as mudanças sugeridas pelo Projeto de Revisão do Código Civil?
São quatro os principais pontos de mudança que impactarão nas doações de ascendentes a descendentes e de cônjuges/conviventes ao outro: o primeiro, que já se adiantou em artigo anterior da série, diz respeito à pretensão de exclusão do cônjuge/convivente da condição de herdeiro necessário.
Com efeito, caso seja aprovada esta exclusão, o artigo 544 deixará de mencionar as doações feitas de um cônjuge/convivente a outro. Na prática, se o beneficiário não é herdeiro necessário, não há que se falar em adiantamento de legítima e, tampouco, em dispensa de colação.
A segunda alteração significativa diz respeito à possibilidade de que a dispensa de colação seja concedida pelo doador por simples declaração, em escritura pública subsequente ao ato. É dizer que, caso o doador não preveja a dispensa de colação expressamente em testamento ou no próprio instrumento de doação, como já autoriza a lei vigente, poderá fazer unilateralmente esta dispensa, em momento posterior, por meio de escritura pública. A previsão surge como alternativa útil para planejamentos sucessórios que tenham se iniciado após a prática de atos de liberalidade neste ponto deficientes.
Em terceiro lugar, com relação às já bem definidas doações realizadas de forma sucessiva, o Projeto de Revisão do Código Civil prevê que, com relação ao cálculo do excesso, serão levadas em conta todas as liberalidades efetuadas – como se viu, sedimentando o entendimento jurisprudencial majoritário a respeito e minimizando litígios que suscitem dúvida quanto ao cômputo e à validade destas doações.
Em quarto, o Projeto de Revisão do Código Civil também visa encerrar o conflito que há entre o Código Civil e o Código de Processo Civil a respeito do valor de colação dos bens doados – ou seja, sobre o valor que deverá ser indicado no inventário para o cálculo da legítima e da disponível do doador à época da liberalidade. Conforme o novo texto do artigo 2.004, o valor de colação dos bens doados passará a ser “o valor certo ou estimativo que lhes atribuir o ato de liberalidade, corrigido monetariamente até a data da abertura da sucessão.”
Na prática, estas mudanças trarão alternativas interessantes e maior clareza nos planejamentos sucessórios nos quais a realização de doações seja recomendada para atender aos interesses das famílias.
[1] Porção reservada aos herdeiros necessários. Mínimo de 50% do patrimônio.
*Este conteúdo foi produzido em 03 de junho de 2024.
Beatriz Martinez ([email protected]) e Fernanda Perini ([email protected]) estão à disposição para esclarecer quaisquer questões adicionais relacionadas ao tema. As informações presentes neste conteúdo não devem ser utilizadas para fins de consultoria. Cada caso deve ser analisado de forma individual.