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O fideicomisso entre vivos e testamentário no Projeto de Revisão do Código Civil

O artigo de hoje da nossa série sobre o anteprojeto de lei para revisão e modernização do Código Civil (“Projeto de Revisão do Código Civil”) trata da instituição do fideicomisso por ato entre vivos ou por disposição testamentária. Os textos anteriores da série podem ser acessados ao final desse conteúdo.

O que é o fideicomisso?

“Fideicomisso é o instituto jurídico em virtude do qual se adquire domínio com a inerente obrigação de conservar o bem recebido e, por morte, depois de certo tempo, ou sob determinada condição, transmitir a outra pessoa, física ou jurídica”, conforme define Carlos Maximiliano (Direito das Sucessões. V. III. 4ª. ed. Freitas Bastos : Rio de Janeiro/São Paulo, 1958)

Quais são as partes do fideicomisso?

O instituidor do fideicomisso, chamado “fideicomitente”, institui um “fiduciário” com a obrigação de transmitir a outrem, o chamado “fideicomissário” certo bem ou direito, no momento acima assinalado (i.e. por morte ou quando da verificação de termo ou da condição impostos).

Limitações ao fideicomisso sob o Código Civil em vigor

O Código Civil em vigor dispõe sobre o fideicomisso ao tratar das substituições testamentárias, nos arts. 1.951 a 1.960, determinando a possibilidade de sua instituição “somente em favor dos não concebidos ao tempo da morte do testador”, o que, atualmente, limita ao extremo o seu uso como ferramenta de planejamento patrimonial e sucessório.

Como é tratado o fideicomisso no Projeto de Revisão do Código Civil?

O Projeto de Revisão do Código Civil, não somente, de um lado, propõe extinguir a limitação do fideicomisso aos não concebidos ao tempo da morte do testador, admitindo, em vez disso, pessoas jurídicas ou físicas, já nascidas ou concebidas, ou, ainda, pessoas não concebidas, determinadas ou determináveis, como fideicomissários; como também, de outro lado, propõe admitir expressamente o fideicomisso instituído tanto por testamento como por ato entre vivos.

Tratando-se de fiduciário ou qualquer fideicomissário pessoa física, o fideicomisso poderá por ser instituído em caráter vitalício. Já em se tratando de fiduciário e fideicomissário pessoa jurídica, o prazo de vigência do fideicomisso fica limitado a 20 anos. Não está expressa no texto do Projeto de Revisão do Código Civil a vedação aos fideicomissos para além do segundo grau, tal como hoje consta do art. 1.959, mas certamente haverá que se discutir limites a esse respeito à vista da vedação a limites perpétuos à circulação da riqueza. Evidentemente, também, a possibilidade de instituição do fideicomisso está limitada pelos direitos dos herdeiros necessários à porção legítima da herança, que não tolera condições, termos ou encargos e, tampouco, a resolubilidade da propriedade transmitida a esse título.

Gestão dos ativos e papéis do fiduciário

O Projeto de Revisão do Código Civil dedica diversas disposições à gestão dos bens objeto do fideicomisso pelo fiduciário, permitindo tanto que se compreenda o fiduciário como o primeiro efetivo beneficiário dos bens e direitos transmitidos, como também que se atribua ao fiduciário uma posição de exclusivo gestor dos ativos de tais bens e direitos em favor do fideicomissário, de forma assemelhada ao que ocorre com o trustee, em se tratando de trusts.

Nesse sentido, está previsto no Projeto, dentre outros, que o fiduciário:

  • ao receber a propriedade resolúvel dos bens e direitos (incluindo bens digitais), assume “deveres de gestão, conservação e ampliação desses bens, nos termos previstos do ato de instituição e com o propósito específico de transmiti-los” aos beneficiários finais (fideicomissários), podendo, inclusive, no exercício de suas funções “contratar, por sua conta e risco, terceiros para exercer a gestão do patrimônio objeto do fideicomisso, inalteradas as suas responsabilidades legais e contratuais”;
  • fica vinculado a poderes e deveres de gestão na extensão prevista na lei e no instrumento de instituição do fideicomisso (testamento ou negócio jurídico inter vivos), que especificará, ainda, se há ou não autorização para o fiduciário alienar bens do acervo em fideicomisso, gravar ou onerar os bens do patrimônio correspondente, comprar novos ativos e realizar investimentos, especificando também como tais atos devem ser conduzidos pelo fiduciário, incluindo no que se refere à destinação de frutos e rendimentos;
  • poderá ser remunerado pelo exercício de sua função;
  • deverá exercer todas as ações atinentes à defesa dos bens e direitos objeto do fideicomisso, inclusive em face do fideicomissário, ficando pessoalmente responsável pelos prejuízos que, por dolo ou culpa, der causa, respondendo, ademais, pelos atos que violem as cláusulas previstas no ato de instituição do fideicomisso, sendo-lhe vedado agir em conflito de interesses em relação ao fideicomissário ou aos propósitos estabelecidos no instrumento de instituição do fideicomisso, sob pena de destituição pelo juízo competente.

Fideicomisso como ferramenta de planejamento sucessório

Ao disciplinar a tributação dos trusts constituídos no exterior, a Lei n° 14.754/2023 viabilizou, em muitos casos, o tratamento da sucessão offshore por meio deste instituto. No que tange à sucessão de ativos situados no Brasil, o Projeto de Revisão do Código Civil, ao disciplinar o fideicomisso, poderá contribuir de forma análoga para o alcance de objetivos bastante caros a indivíduos e famílias ao planejar a sua sucessão.

Com efeito, já tivemos a oportunidade de salientar que são inúmeras as razões que levam indivíduos e famílias em conjunto a organizar seu patrimônio e planejar a sucessão, estando dentre elas o objetivo de resguardar e perpetuar o patrimônio construído, não somente em benefício da geração atual, mas também em prol das gerações futuras e/ou de uma causa reputada legítima.

Dissemos, ainda, que, não raras vezes, resguardar e perpetuar o patrimônio construído em benefício de uma ou mais gerações de indivíduos ou de uma causa significa proteger um ou outro herdeiro futuro da própria atuação temerária em potencial, seja em razão de efetiva deficiência cognitiva, seja em razão de pouca idade, imaturidade, prodigalidade, inaptidão ou falta de instrução técnica apropriada para gerir o patrimônio futuro, falta de interesse em adquirir os conhecimentos necessários para tanto, mágoa em relação a outros membros da família ou até falta de propósito de vida.

O que se deseja, na grande maioria das vezes, não é privar completamente o herdeiro do benefício econômico gerado pelo patrimônio – deseja-se, ao contrário, assegurar-lhe a possibilidade da mais ampla e completa fruição de tal benefício. Procura-se, em geral, evitar que seja comprometida a fonte da renda, atribuindo, para tanto, a sua gestão a outrem, que melhor poderá desempenhá-la, sob fiscalização adequada.

Embora remanesçam dúvidas a sanar no que se refere à sua implementação, a partir do regramento proposto no Projeto de Revisão do Código Civil, e haja, inclusive, pontos que eventualmente poderiam ser aproveitados do Projeto de Lei n° 4758/2020, que dispõe sobre o tratamento da Fidúcia, é inegável que o fideicomisso, sob a luz que lhe lançou o Projeto, poderá despontar como uma ferramenta bastante útil para a estruturação adequada de planejamentos patrimoniais e sucessórios no Brasil.

 

*Este conteúdo foi produzido em 21 de junho de 2024.

Adriane Pacheco ([email protected]) e todo time HSA estão à disposição para esclarecer quaisquer questões adicionais relacionadas ao tema. As informações presentes neste conteúdo não devem ser utilizadas para fins de consultoria. Cada caso deve ser analisado de forma individual.

 

Confira os conteúdos anteriores da série: